HÁ UM ANO... >> Eduardo Loureiro Jr.

Micro Discovery corbis.com"Haverá um ano em que haverá um mês em que haverá uma semana em que haverá um dia em que haverá uma hora em que haverá um minuto em que haverá um segundo, e dentro do segundo haverá o não-tempo sagrado da morte transfigurada."
(Clarice Lispector)

Essa é a história de um amor que acabou, mas sem deixar de ser para sempre.

Há um ano (em) que a vida é leve. O objeto do desejo impossível inexiste. O próprio objeto é agora impossível. E o desejo está livre. Eu lhe sinto como o vento, como se fosse seu cheiro. Eu lhe sinto como uma leve pressão no peito, sua mão pousada em mim na hora do aconchego. Você me vê sem que eu lhe veja? Eu nunca quis mesmo lhe guardar segredos.

Há um mês (em) que eu senti vontade de falar com você. Voltar a falar. Melhor por telefone. Mas por telefone não deu. Arranjaram-me um trabalho no interior da fortaleza. Quando cheguei à fortaleza, você poderia ver-me. E marcamos de nos ver. Eu queria tanto o seu amor que só queria o seu amor. Eu cheguei a querer você mesmo que fosse sem o seu amor. Agora eu queria o seu amor mesmo que fosse sem você.

Há uma semana (em) que eu liguei para minha amiga. Ela havia me dito que uma separação se supera em dois anos. Nem mais nem menos. Cento e três semanas haviam se passado desde que você se separara de mim. Cento e três semanas, e eu não havia conseguido me separar de você. Liguei para a minha amiga. Dei-lhe o aviso prévio: falta uma semana, é bom que tudo esteja resolvido em uma semana, você me prometeu que tudo se resolveria, você só tem uma semana. Ela riu. Mas em uma semana resolveu tudo. Teria sido mesmo minha amiga a responsável por tudo ter se resolvido? Será que ela mexeu os pauzinhos nas suas costas, nas costas de sua amiga, nas costas do homem que decidiu tudo em um segundo?

Há um dia (em) que as pessoas se despedem. Eu lhe esperei como estava sempre esperando. Você foi à praia com uma amiga. Avisou-me por telefone, pediu que eu aguardasse. Eu fiquei lendo para nossa pequena criança uma coleção de livros pequenos, minúsculos, que a sua amiga havia trazido de uma distância muito grande. Eu li todos os quinze livros, e você chegou. Nossa pequena criança se despediu de nós pelo vidro traseiro do carro. Foi a derradeira vez em que ela nos viu juntos: um sorriso, um aceno.

Há uma hora (em) que é final. Eu lhe disse que pela primeira vez, em dois anos, eu não iria lhe pedir em casamento. Eu lhe disse isso com a escondida esperança de que você dissesse: "Pois agora, justo agora, eu aceito o pedido que você não tem mais coragem de fazer." Mas você apenas aceitou meu oferecimento de amizade e disse que a vida agora lhe era simples porque você se sentia amada por todos. E eu lhe disse que minha vida era simples desde o dia em que perdera você: quando não se pode ter o que mais se quer, qualquer coisa é surpreendentemente suficiente, satisfatória, plena.

Há um minuto (em) que se diz tudo. Eu segurei sua mão. Eu a beijei. Você não queria mais estar em lugar nenhum onde não pudesse dizer o que quisesse dizer. Foi bom vê-la descer do carro, esse lugar em que você pôde dizer tudo, até isso. Você cumprimentou o porteiro, cruzou o portão e acenou atrás da grade. A última vez que lhe vi: aceno, sorriso.

Há um segundo (em) que tudo muda. Você e sua amiga no carro, na rua, na madrugada, no momento em que você já estaria dormindo enquanto nossa pequena criança dormiria no quarto ao lado. Mas, desta vez, era sua amiga ao lado, no banco, e ao lado de sua amiga, de pé atrás do vidro, um desconhecido com uma arma na mão. Sua amiga gritou. Você acelerou. O desconhecido atirou.

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Há um não-tempo (em) que tudo pára. A ponta prateada — feito uma prótese de dedo — perfura a bolha lilás e faz o amor explodir: livre, feliz, violeta. Respingos coloridos na memória de quem nem esteve lá.




Texto: Clarice Lispector
Composição: Fabiano dos Santos
Interpretação: Eduardo Loureiro Jr.

Comentários

Anônimo disse…
Todos os sentidos falam tão alto por entre essas linhas, que chega a ser difícil alinhar palavras... extremamente doce, forte, tocante.
padma wangmo- disse…
Perdi meu marido há um ano e meio, durante um assalto em POrto Alegre.
Minha vida seguiu, tudo agora é satisfatório e muito simples...e o não tempo é o tempo todo.
Estou grata por ter encontrado esta crônica. Obrigada.
Anônimo disse…
" Essa é a história de um amor que acabou, mas sem deixar de ser para sempre."

Junoca, creio que esse seu sentimento de tê-la para sempre, mesmo sem tê-la mais por perto, é comum a todos que a tivemos, por um ano, uma semana, um dia, um segundo...

Muito linda e emocionante sua crônica! Não consegui conter as lágrimas.

Tia Monca
Carla Dias disse…
Sua crônica me deu o maior aperto no coração... E sou eu, da distância, quem assistiu a tudo como quem contempla uma vitrine de emoções.
O que posso dizer? Pouco, mas algo que tenho por certo: a vida pode até encurtar presenças, mas também tem o dom de alargar o efeito que essas presenças nos causam durante a passagem. Há presença na ausência de quem aprendemos a amar assim, por inteiro.
Anônimo disse…
nossa...
essa foi de perder o ar.
amei. odiei. mas amei a crônica..
Tânia Batista disse…
Li e chorei. Poiucas palavras nesse momento, querido amigo.
A saudade é expressão do tempo inatingível...da presença leve de quem amamos...da poesia que revela sentimentos...do humano desejo da eternidade..
E eternos são aqueles que se gravam em nós como marcas da beleza do vivido... como provas irrefutáveis da eternidade do espírito...
Salve Déa...
Salve a vida...
Salve o amor que a ela nos une..

beijo doce e saudoso..
Sua crônica me fez sentir uma vontade crônica de Déa. De sentir seu silêncio e sorriso, sua fala e sua voz. “Nem tanto pelo encanto das palavras, mas pela beleza de se ter a fala”. Sempre preciso ouvi-la. Saber o que acha de tal coisa e quais os caminhos possíveis e impossíveis, visíveis e invisíveis, dizíveis e indizíveis. Eu que invente travessias enquanto ela sopra venturas e inspirações. Mas também senti o não-tempo sagrado aonde a gente vai se tocar. Ou, para quem ainda se admira com as coisas do mundo, onde a gente se toca e faz soar um som em nós e em cada pessoa. Grato, Fabiano.
Anônimo disse…
Você me fez juntar agora um bocado de coisa
“longe é um lugar que não existe”
“Essa é a história de um amor que acabou, mas sem deixar de ser para sempre”
“descobriu que cada vez que lembrava da rainha que nunca mais reviu, ele era feliz para sempre”
A simplicidade da vida sentida pelo amor.
O desejo da irmã da Andréa de que ela seguisse por um caminho de luz violeta, naquela despedida, há um ano.
O amor explodindo em violeta na ilustração, depois de um ano.
É amor, é luz, é cor.
Que seja pra você, pra Andréa, pro Fabiano, pra Mônica, pra quem mais quiser e pra mim também.
Beijo. Hebinha
Eduardo,
Que há pra dizer? Tão belo e tão triste... Tão vida e tão fim... Estou sem palavras...
Beijo grande.
Anônimo disse…
Faz um ano....
Aquele telefone tocou......
Todos acordaram naquele momento....
Faz um ano,
parece que foi ontem?
ou nunca aconteceu?

É meio dificil compreender....
Uma vida que foi tirada a força...
Que onde ela estiver...que esteja com Deus.Ajudando todos nos,como um anjo.
Anônimo disse…
Du,

Eu gostaria de dizer algo, mas não encontro palavras. Então me calo e e reverencio a expressão desse amor tão belo, tão profundo, tão intenso e tão cheio de saudade, um amor mais forte que a morte, que o tempo, mais forte que a ausência.

Um beijo no seu coração,

Inês
Lindo. Sublime.
A perfeição.
Sem palavras, Eduardo, ao ler os comentários e me aperceber que trata da vida real.
Que pode ser linda. Perfeita. Infinitamente triste.

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